sábado, 27 de setembro de 2008

Paixões que Alucinam


Muito mais do que uma contundente crítica às controversas práticas manicomiais, Paixões que Alucinam, de Samuel Fuller, é um libelo contra a doentia sociedade norte-americana dos anos sessenta. A trama principal, aos olhos mais atentos, revela-se como um pano de fundo para que o diretor, adepto de um estilo cinematográfico infenso ao engessado sistema de produção industrial hollywoodiano, ataque, de forma ácida e audaciosa, as principais mazelas americanas da época: o racismo, a guerra fria e sua tresloucada corrida armamentista e os avanços científicos sem limites éticos.


Para tecer tais críticas, Fuller constrói um enredo convincente. O filme tem como personagem principal John Barret, um ambicioso jornalista que, para ganhar o prêmio Pulitzer – a honraria máxima do meio jornalístico –, se passa por um perturbado mental a fim de se internar em um hospital psiquiátrico e desvendar o assassinato de um homem chamado Sloan, morto no manicômio. Barret se dispõe, então, a passar por sessões de treinamento psicológico para interpretar seu personagem: um sujeito que nutre incontroláveis desejos incestuosos por sua irmã. Quem desempenha o papel da sua irmã é a sua própria esposa, uma dançarina de clubes noturnos, que desde o início se opõe ao plano do marido, temendo que ele enlouqueça durante a investigação.


É partindo de um tema tabu – o incesto – que Fuller já prenuncia outros assuntos espinhosos, como se o sanatório ali representado fosse um microcosmo da sociedade americana. Barret tem uma lista de três testemunhas que poderiam ajudar a elucidar o crime. Stuart, em meio aos seus delírios, representa a paranóia de perseguição aos comunistas que tomou conta dos Estados Unidos durante a Guerra Fria e, mais especificamente, após o início do macarthismo; Trent, um negro vítima do preconceito racial que sofre um colapso psíquico e se transforma em um racista, é a personificação da intolerância racial em tempos de Ku Klux Klan; e Boden, um físico nuclear que participou dos projetos de criação da Bomba Atômica e enlouqueceu em função dos questionamentos e conflitos éticos suscitados por sua profissão, é, por sua vez, a encarnação da crítica ao pragmatismo e à desumanização do campo científico. Em um lampejo de lucidez, Boden professa um discurso belíssimo, em que é impossível não reconhecer semelhanças com o discurso final de O Grande Ditador:


“Nos sofisticamos na arte da matança, temos intelectuais demais, cansei da pílula diária de veneno da humanidade. Sou ciência pura; estamos à beira da destruição, como tigres. Dão quinze dias para a raça humana; não consigo viver com prazos finais; então desisti de viver”.


Ainda que seja um filme realista – uma vez que trata de temas de elevado teor humanista e social –, Paixões que Alucinam dialoga com outras escolas cinematográficas, destacadamente com o Surrealismo. A introdução de elementos de ordem psíquica – sonhos, alucinações, transes –, que revelam a ilogicidade e o caráter absurdo do inconsciente dos personagens, são claras influências do pensamento freudiano, a base do Surrealismo.


Paixões que Alucinam, em resumo, é um filme que se vale de uma engenhosa trama para tratar de temas delicados. A ótima fotografia, os diálogos inteligentes e o flerte com o Surrealismo engrandecem ainda mais uma obra contestatória e desafiadora.


Guilherme Vasconcelos.

2 comentários:

Tais Bichara disse...

achar esse filme para alugar seria ótimo mesmo.

jéssica. disse...

bem, ele viu na faculdade...

faça amizade com os professores e peça! estarei aguardando. :P